(texto publicado originalmente em 2020, em meu antigo site)

Alguns anos atrás tive a oportunidade de realizar alguns trabalhos em oficina. Serrar, esquentar, martelar, laminar e polir metais, transformando-os em joias bonitas. É uma sensação única de poder, quando tem em mãos um metal duro, rígido e aparentemente inflexível, e que depois de muito fogo e marteladas, o faz se curvar de acordo com a sua vontade. Se isso não for magia, não sei o que é.

Quando pensamos hoje em dia a imagem de um ferreiro, muitas coisas nos veem a mente, mas dificilmente pensamos em demônios, bruxaria e misticismo. Mas é só forçar um pouco mais a mente e uma certa ligação já começa a ser esboçada, pois lembramos que há um ditado que diz que “cabeça vazia, oficina do diabo”. Pensamos nas representações do inferno como um lugar flamejante e com cheiro forte de enxofre e já ligamos a figura do ferreiro em sua forja.

Sabemos que várias ordens iniciáticas do passado e do presente possuem vínculos com ofícios, compartilham parte da sua história com a história das guildas. Os maçons, originalmente pedreiros, os alquimistas e até mesmo os jardineiros em suas respectivas ordens iniciáticas em que o trabalho “físico” (construção, química, cuidar de um jardim) possui paralelos com o desenvolvimento espiritual, por meio de metáforas. Além das propriedades mágicas dessas profissões, nota-se que se organizavam de modo que os segredos permanecessem preservados ou podiam inspirar um ar de mistério.

O pedreiro responsável pela construção de um castelo, sabia exatamente toda a sua planta, assim como passagens secretas (afinal, ele quem projetou e construiu), portanto, o rei deveria se certificar de que o responsável ficasse em  sigilo e não vendesse os segredos para o inimigo. O alquimista, por si só escondia seus segredos em símbolos “hermeticamente” fechados, em que somente um iniciado com as chaves certas saberia do que se trata. O jardineiro era respeitado e temido. Tinha o conhecimento de ervas que curam assim como plantas venenosas como do gênero aconitum, cujo envenenamento leva a uma morte rápida, agonizante e irreversível.

No caso do ferreiro, assim como essas profissões, também possuía associações secretas e mágicas, que veremos a seguir. No começo da idade média, o ferreiro da aldeia era uma figura central. Muitas vezes era ele quem fazia as ferraduras para os cavalos. Os pregos para os caixões dos mortos. Os utensílios de cozinha das esposas. O machado do lenhador, a espada do homem de armas.

Posteriormente, as especializações foram surgindo, em que alguns ferreiros trabalhavam só com uma coisa, mas permanecia a figura do faz-tudo para atender a demanda local. Dependendo do seu objetivo como ferreiro, existem técnicas e misturas metálicas diferentes. A maioria delas era passada de mestre para discípulo, de forma confidencial, especialmente no que se refere à fabricação de espadas.

O ferreiro era uma pessoa em contato constante com o ferro. Dizem que o mais puro dos ferros é o que vem do espaço, em meteoritos, que acredita-se ser um presente dos deuses. O restante é encontrado debaixo da terra. Em várias tradições mágicas, o sangue menstrual da mulher é considerado uma substância mágica por si só, além de poderosa e sinistra.

Da grande mãe terra, em que pisamos e vivemos, a menstruação é o ferro, tornando este metal igualmente mágico. Pelo contato com esse material mágico, o ferreiro torna-se mais que um artesão, e, por além disso, dobrar, moldar, transformar a substância bruta conforme sua vontade, manipulando-a, também se torna uma espécie de mago.  Lembrando que não era incomum o ferreiro da aldeia também possuir conhecimentos de ervas e realizar curas.

O sangue menstrual pode ser mágico, mas também é “sujo”, tal como o ferro que o ferreiro tanto manipula. Por isso, esse trabalhador nem sempre era bem visto. Definitivamente era considerado necessário, mas também sujo e amaldiçoado. O ferreiro sem dúvida é uma figura ambígua. Na Europa cristã, muitas vezes o Diabo era representado trabalhando na forja com seu avental de couro. Um costume folclórico da Áustria e sul da Alemanha era de o ferreiro martelar em sua bigorna três vezes no sábado, depois de concluído o serviço, como uma forma de impedir que o diabo aparecesse naquela semana.

Um filme muito interessante que mostra a relação folclórica do ferreiro com o diabo é Errementari, um filme basco que apresenta muitos elementos inclusive de associação entre a arte da forja com acordos e aprisionamento de demônios, algo que lembra um pouco a famosa história de fausto e o demônio Mefistófeles. De acordo com folcloristas, a história de um ferreiro que faz algum tipo de pacto com um demônio, diabo ou espírito maligno é uma das mais antigas que se pode rastrear na Europa.

Na mitologia e nas tradições pagãs possuímos diversos deuses ferreiros.

  • No paganismo eslávico, o deus criador do universo é Svarog, que além de criador e ordenador do cosmos também é um deus ferreiro e do fogo.
  • O Hefesto dos gregos e Vulcano dos romanos era feio, manco, mas com um trabalho metálico incomparável, sendo deus da forja, da metalurgia, do artesanato e de toda a tecnologia como um todo, além de um protetor dos trabalhadores.
  • Entre os germânicos, o semi-deus associado a forja era Wayland/Wieland/Völundr, o ferreiro, cuja engenhosidade o possibilitou fazer um par de asas que o permitiram voar. Há inclusive um local na Inglaterra, Wayland Smithy ou seja, a forja de Wayland, um túmulo do neolítico que os saxões da época nomearam em homenagem a esse Deus, e é um local também associado com bruxas e druidas até hoje.
  • Ainda entre os germânicos, os anões são conhecidos por fazerem armas e artefatos mágicos e maravilhosos, principalmente para os deuses.
  • O deus/orixá africano Ogun é associado ao  ferro e ao trabalho com esse metal, principalmente em um contexto marcial.
  • Na mitologia cristã, Tubalcaim é o primeiro a trabalhar com bronze e ferro, o primeiro ferreiro. Descendente direto de Caim, Tubalcaim é, além da associação com os ferreiros, considerado em algumas tradições como o primeiro bruxo, portanto igualmente patrono de ferreiros e bruxos.

Conseguimos inserir a figura do ferreiro na magia, então é importante lembrar que os metais são essenciais. Na tradição de pantáculos e talismãs mágicos, cada planeta possui um metal correspondente, e conseguir fabricar da maneira correta exige tanto um conhecimento teórico astrológico quanto prático, de oficina.

De forma iniciática, o ferreiro também percorre um caminho semelhante ao alquimista. Enquanto este transmuta o chumbo bruto em ouro puro, aquele, a partir do metal duro, sujo, inflexível, por meio de fogo e martelo transforma-o em o que o ferreiro quiser, moldando a sua realidade e refinando-o em algo belo, útil. Tanto o ferreiro quanto o alquimista lidam com a transformação, seja interna e também externa.

Se você quer trabalhar com metais ou aperfeiçoar-se no ocultismo, espere o mesmo para ambos: poderá ter resultados incríveis, mas com muito suor e sangue. 

Parte das informações desse texto retirei dos seguintes livros (em inglês):

Blacksmith Gods – Pete Jennings

The Element Encyclopedia of Witchcraft – Judika Illes